sexta-feira, 2 de maio de 2014


                         Páscoa e nova Criação

«Senhor nosso Deus, que de modo admirável criastes o homem e de modo mais admirável o redimistes» – é assim que se reza na Vigília Pascal após a primeira leitura do livro do Génesis em que se narra a criação do homem. 

Toda a celebração pascal proclama a grandeza e bondade do Senhor que, tendo realizado maravilhas assombrosas ao criar do nada todas as criaturas, coroando a sua obra com a criação do ser humano, de algum modo se excedeu na maravilha da redenção renovando o ser humano e todas as coisas pela Páscoa do seu Filho.

A liturgia é a impugnação viva de todo o maniqueísmo para o qual o mundo material é mau, sendo o resultado da atividade de um princípio eterno do mal que se contraporia a um princípio igualmente eterno do bem. Pelo contrário, a liturgia dos sacramentos assume as realidades criadas como sinais e instrumentos da graça salvífica: o banho com água, no batismo; a unção com óleo perfumado, na Confirmação; a Eucaristia com pão e vinho… e assim sucessivamente. 

Como já explicava Tertuliano, escritor do século II-III, para que haja um sacramento tem de se juntar a Palavra ao elemento material, sendo imprescindível uma e outro.
A Vigília Pascal celebra a redenção mas esta não se compreende desvinculada da
Criação. É assim que a Vigília começa com a bênção do fogo – lume novo – do qual se ateia a chama para acender o círio pascal e se retiram as brasas para queimar o incenso no turíbulo fumegante. Noutros tempos em que os fiéis levavam a rigor o jejum de sexta-feira santa e sábado santo, o fogo extinguia-se nos lares e só se reacendia com a chama tomada do círio pascal aceso no lume novo, sendo levada religiosamente para casa no final da celebração.

A Vigília prossegue com o solene lucernário que tem como ponto alto o precónio pascal em que se cantam os louvores desse círio, fruto da operosidade da fecunda abelha.
Cantam-se então as maravilhas da noite que recapitula toda a história. O tema da luz
com o seu rico simbolismo atravessa transversalmente toda a Vigília: primeiro é o
acender progressivo da luz – e para isso ajuda começar a celebração com o mínimo de luz – que só atinge o seu auge após o canto festivo do Glória, entre o repicar de sinos e campainhas. O próprio Deus é visto como «luz sem ocaso» (oração após a 7.ª leitura) e «faz resplandecer esta sacratíssima noite com a glória da ressurreição» do Seu Filho.
Depois vem a água, humilde e casta – como lhe chamou São Francisco – criatura
chamada a desempenhar um papel decisivo na noite santa. E a bênção é muito
explícita: «Logo no princípio do mundo, o vosso Espírito pairava sobre as águas,
prefigurando o seu poder de santificar»
e, depois, a oração canta as várias etapas
históricas da preparação divina da água para o ministério do Batismo. 

Mas quando não há batizados e se benze apenas a água lustral para o rito da aspersão, o tema está igualmente explícito: «Ao celebrarmos a obra admirável da nossa criação e a maravilha ainda maior da nossa redenção, dignai-Vos abençoar esta água. Vós a criastes para dar fecundidade à terra e frescura e pureza aos nossos corpos …».

Fazem depois a sua aparição na liturgia outros elementos da criação: o azeite das
unções, o pão e o vinho da eucaristia… Tudo, porém, culmina na recriação do homem redimido e transformado em «fiel». Canta-se no prefácio pascal IV: «Porque, vencendo a antiga corrupção do pecado, renovou a vida do universo com uma nova criação e restaurou o género humano na sua integridade original». E são estes os sentimentos da Igreja ao celebrar a Eucaristia no Domingo da Ressurreição: «Exultando de alegria pascal, nós Vos oferecemos, Senhor, este sacrifício, no qual tão admiravelmente renasce e se alimenta a vossa Igreja».

(De Voz Portucalense)